Há algum tempo, procurava esse artigo que o Pontes de Miranda usava frequentemente para citar a si próprio. De fato, é curioso pensar que um jurista brasileiro, aos meros 30 anos de idade, ousasse entrar, numa revista jurídica alemã, em um debate sobre direito alemão e... escrevendo em um alemão perfeito e até curiosamente rebuscado. Esse caráter rebuscado foi justamente o que me chamou a atenção no trecho grifado. Explico:
Em alemão, obwohl (embora) é sempre conjunção; como tal, introduz uma oração que, em tese, precisaria sempre ter verbo. Mas não é isso que se vê na frase: a obwohl, segue-se um sintagma nominal (animistischer Natur) no genitivo, que é inexplicável sintaticamente. Será que Pontes se enganou e usou obwohl em lugar de trotz? Afinal, trotz é preposição e rege genitivo. Pois é, nada disso. O que há aí é algo que as pessoas não aprenderão nem em 50 anos de Goethe-Institut (e digo por experiência própria).
O que há aí é um genitivo absoluto, uma construção nominal que substitui a oração. O genitivo absoluto, que existe também no grego, pode ter mil sentidos e costuma aparecer em expressões mais ou menos fixas, como klopfenden Herzens (com o coração batendo), meines Erachtens (na minha opinião), eines Tages (um dia), etc. O alemão dispõe, ainda, de uma construção elíptica normalmente designada por acusativo absoluto. Por exemplo: Er stand hinter der Tür, den Dolch in der Hand, und bewegte sich nicht (Ele estava de pé atrás da porta, com o punhal na mão, e não se movia). Por qual razão Dolch está no acusativo? Pois é, é um acusativo absoluto e está desligado da regência verbal. O que Pontes de Miranda usou em animistischer Natur é um genitivo absoluto, muitíssimo raro; assim, a construção com obwohl se justifica.
No entanto, não fiz o post para louvar o conhecimento linguístico do jurista, mas para fazer uma reflexão: por qual razão, hoje, conseguir escrever um texto perfeitamente em uma língua estrangeira é algo tão raro e, por conseguinte, tão valorizado? Como disse, essas construções gramaticais jamais seriam explicadas a um estudante estrangeiro, o que evidentemente limita sua capacidade expressiva.
Parece-me que, ao menos desde os anos 60, houve uma mudança no objetivo do ensino das línguas estrangeiras: se antes eram ensinadas tendo por modelo as línguas mortas, que se usam para ler e escrever sobretudo, elas passaram a ser ensinadas com o objetivo de que o aluno saiba de comunicar oralmente. Ora, isso evidentemente é louvável, mas, na perspectiva daqueles que fazem uso acadêmico das línguas estrangeiras, as outras competências - sobretudo leitura e escrita - passaram a um segundo lugar muitíssimo problemático, já que, na prática, não se ensina nada daquilo que fuja à imediatez da experiência imaginada de um estrangeiro. Em outras palavras: imaginam-se as situações que um estrangeiro teria de encarar - comprar coisas, tirar documentos e licenças, manter conversas superficiais - e dão-se-lhe aqueles instrumentos básicos para conseguir cumprir essas funções; e nada mais. Todo o resto do percurso tem que ser feito individualmente.
Lembro-me, nesse ponto, quando estava nos últimos níveis de alemão do Instituto Goethe e, dado um trecho inicial do Fausto de Goethe - que, acreditem, não é tão difícil -, a quase totalidade da sala não era sequer capaz de entender o assunto de que se tratava ali. E eu percebi logo a razão: como todo o ensino era dedicado a instrumentalizar linguisticamente um conjunto de situações imaginadas, toda situação que fugia a esse conjunto apresentava dificuldades insuperáveis aos alunos. Afinal, o ensino das línguas hoje não me parece mais dar a autonomia que é necessária para que o estudante faça aquilo que ele quiser com a linguagem. É o resultado dessa mudança que nos faz parecer grandiosa essa anedota que relatei do Pontes de Miranda; mas é bom lembrar que, décadas antes, Tobias Barreto havia editado um jornal em alemão.
Enfim, pôr as línguas em contato com situações sociais pode ser um recurso pedagógico interessante, mas não pode desconsiderar o fato de que a língua é uma estrutura com razoável grau de independência dessas mesmas situações e, por isso mesmo, o ensino da língua, considerado todos os níveis, deve dar todos os instrumentos necessários à expressão autônoma do aluno.
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