terça-feira, 3 de agosto de 2021

Doutrina estrangeira: ler ou não ler?

Eis a primeira parte do Tractatus de Executionibus, de Silvestre Gomes de Moraes, autor português do séc. XVII sobre cuja obra Pontes de Miranda afirmou, no Prefácio aos seus Comentários ao CPC, que ela "versou tôda a matéria da fôrça e do efeito executivo dos instrumentos e das sentenças. É a obra capital para estudo do Livro VIII do Código". Trata-se, portanto, de um dos principais autores dedicados efetivamente ao direito luso-brasileiro, e não ao direito comum, como tantos portugueses antes dele - basta lembrar-se de Agostinho Barbosa, Francisco Caldas ou Álvaro Vaz. S. Gomes de Moraes queria interpretar as Ordenações do Reino de Portugal, e não as fontes do direito comum, como o Digesto ou o Codex.




No entanto, como o faz? Já o início da sua obra o diz: o entendimento do direito português só pode ser alcançado por meio da comparação com outros direitos nacionais, além, é claro, dos direitos comuns - civil e canônico. É por meio desta comparação que se vai construir o direito português, isto é, dotar-lhe de conceitos dogmáticos, tirado à tradição pretérita comum e aos incipientes direitos nacionais. É preciso sobrepor à fonte primária uma camada dogmática, cujos conceitos não devem e nem podem ser elaborados do zero: é preciso recorrer seja a uma tradição pretérita, seja às discussões contemporâneas sobre direitos estrangeiros aparentados. Não se trata, portanto, de verdadeira comparação, mas de construção.
Por qual razão isto é importante? Pois o procedimento dos (bons) juristas brasileiros segue sendo o mesmo. Diferente do que acontece no direito alemão ou no francês, que também são filhos do direito comum no que diz respeito ao conteúdo de seus ordenamentos, o direito brasileiro é duplamente filho do direito comum: seja no conteúdo, seja na metodologia. Nossos manuais tradicionais ainda apresentam cada instituto jurídico principiando pela definição de direito romano - sempre visto à luz das categorias do direito comum - para, depois, mostrar em que o direito brasileiro "se desviou" desta tradição. Outros autores, não raro, principiam suas discussões in medias res, isto é, tecendo suas considerações como se adicionassem um capítulo à tradição comum. Aqui podemos ver uma outra perspectiva da bela figura de Dworkin - que imaginava, no sistema de common law, que uma nova decisão sobre um assunto funcionava como a adição de um novo capítulo a um livro escrito por outras pessoas. O que lá Dworkin via ocorrer nas decisões dos Tribunais, ocorre aqui na doutrina: é como se cada doutrinador adicionasse um novo capítulo a essa tradição comum.
Como método, essa construção pseudo-comparativa é muitíssimo perigosa, e deve ser reservada apenas a pessoas que dispõem de conhecimento sistemático do ordenamento de origem e do de destino. A razão está em que há constantemente uma tentação a transpor o regime alienígena ao brasileiro, que só pode ser superada pela consciência sistemática de cada um deles. É exatamente o que se pergunta Silvestre Gomes de Moraes no título abaixo: aquilo que estrangeiros escreveram sobre o seu direito pode ser trazido para o direito português? É justamente esta questão que deve nos ocupar diuturnamente ao ler obras estrangeiras.

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