segunda-feira, 19 de abril de 2021

A objetividade da dogmática jurídica: uma anedota

Alguns dias atrás, fui assaltado por uma dúvida de direito civil. Estudando uma questão específica, não encontrei, no direito civil brasileiro, uma regra que regulasse certo problema. É o seguinte: digamos que A venda o mesmo objeto a B e C. Sabemos que ambos os contratos são válidos e eficazes, mas apenas um deles (se muito, rs) poderá ser cumprido. Que adquira a propriedade, entre B e C, aquele que receber por negócio dispositivo (tradição ou acordo registrado), todos sabemos. Mas e antes da tradição, quando ambos os contratos podem ser potencialmente cumpridos? Existe, no direito brasileiro, uma regra que imponha o princípio prior tempore, potior iure aos negócios obrigacionais? Que haja nos negócios dispositivos - como na constituição de direito real sobre coisa alheia - também não tenho dúvida. Essa questão poderia ser relevante em um caso de oposição de terceiro: B, primeiro comprador, descobre que C ajuizou ação pedindo a entrega da coisa com base na compra-e-venda; B, então, opõe-se a ambos no processo, pedindo que a coisa lhe seja entregue, por ser o primeiro comprador. Quid iuris?

Fiz então o que costumo fazer: joguei a questão em um grupo de WhatsApp com três amigos, jovens e brilhantes civilistas, pra ver se me davam uma luz. E fiquei muitíssimo impressionado com o resultado da discussão. Basicamente, eles pegaram situações ligadas à fraude contra credores para resolver o problema: afinal, B teria um obstáculo no recebimento da coisa apenas se C retirasse, do patrimônio de A, o bem que constituía objeto da prestação entre A e B. Trouxeram também argumentos ligados à execução (dupla penhora sobre único bem) e privilégios creditórios, que são todos institutos relacionados. O problema, evidentemente, era saber como lidar com a insolvência, que simplesmente poderia não se verificar em certos casos.

Na ilustração, alguém se candidatando a uma prebenda (Pfründe)

Essa discussão me deixou muito impressionado, pois meus colegas, em 2021, chegaram ao mesmíssimo resultado que os doutores do direito comum. Neste, surgiu uma curiosa figura - a do ius ad rem - que, apesar de estar ligado ao adimplemento de um contrato obrigacional (ou assemelhado), tinha certas peculiaridades que, à época, eram vistas como indicador de caráter real, como a execução específica da obrigação e a oponibilidade, seja aos terceiros de má-fé e até aos de boa-fé, se a título gratuito. O instituto nasceu um pouco do direito canônico (para regular a situação daquele que era eleito ou apresentado para determinado ofício eclesiástico, mas ainda não recebido a colação) e um pouco do direito feudal (caso do vassalo que fizera o contrato de enfeudamento, mas não recebera a Gewere/investitura), mas teve sua forma final em Jasão de Maino e Baldo. Como que esses velhos doutores romanizaram o instituto tirado aos feudistas e canonistas? Entenderam haver aí uma actio in factum revocatoria, isto é, uma ação pauliana - fraude contra credores -, mas "in factum", pois ela era aplicada como se por analogia, já que se dispensava o requisito da insolvência. Este ius ad rem estava previsto, por exemplo, no Codex Maximilianeus bavaricus civilis (1756) e no Allgemeines Preußisches Landrecht (1794) e, na Alemanha, foi revogado só com o BGB. A actio in factum revocatoria ainda era objeto de comentário em plano séc. XIX!

Jasão de Maino

Não é impressionante que meus colegas tenham chegado à mesma solução dos doutores de 800 anos atrás, sem conhecer a tradição nesse ponto específico? Como que podemos compreender isso? Para mim, a questão-chave está em reconhecer que o direito civil é pensado, conhecido e produzido sempre de forma sistemática. O sistema, ao organizar as partes do todo, limita fortemente as possibilidade de soluções jurídicas ainda que não se conheça a totalidade do sistema; basta conhecer, nesse sentido, as estruturas básicas do sistema e alguns institutos jurídicos em que tais estruturas são aplicadas. Por outro lado, isso contém os problemas: se uma previsão específica discorda de todo o restante, é sempre possível vê-la como exceção de uma regra não-escrita menos evidente, mas que se conhece pela frequência com que surge em concretizações específicas ao longo de um Código. Isso permite que se fale sobre partes do sistema sem conhecer a totalidade do restante. Ressalto a importância das estruturas, pois são elas que não mudaram do direito romano para cá, ao passo que os institutos jurídicos em específico sofreram diversas alterações e ressistematizações.

Codex Maximilianeus bavaricus civilis

Escrevo isso por ver hoje muitos colegas do direito - e de fora dele também - julgando que o raciocínio jurídico - e, sobretudo, a dogmática jurídica - tenham um estatuto epistemológico desprovido de objetividade; isto é, como se o direito fosse "mera argumentação", como se toda conclusão carregasse em si forte caráter de opinião, com baixa possibilidade de controle interssubjetivo por uma comunidade científica. Balela! Se o sistema não contivesse estruturas profundas dotadas de alto grau de objetividade, meus colegas, incônscios das opiniones iuris dos velhos doutores, apenas por um golpe de invejável sorte teriam chegado a tal conclusão.

A investidura feudal: quando feita fora do terreno,
diz-se investitura abusiva ou impropria.

Parece-me que a consideração dessa subjetividade seja especialmente importante para os trabalhos de teoria e metodologia do direito, já que há, no Brasil, um estranho hábito de as pessoas dissertarem longamente sobre a dogmática jurídica sem que nunca antes tenham empreendido uma pesquisa dogmática. De fato, é a única explicação para algumas conclusões que vemos por aí. Todos os que já experimentaram fazer tal tipo de pesquisa, já experimentaram também a sensação de pensar uma argumento e vê-lo concretizado em um autor desconhecido e distante no tempo. Alguma explicação há de haver!

No sistema, tudo está ligado

(Para quem se interessou pela questão jurídica, noto que o ius ad rem não parece existir como tal no CC, mas algumas situações a ele ligadas - como o desrespeito ao direito de preempção na compra-e-venda e o aliciamento de trabalhadores na prestação de serviço - são situações às quais se aplicava o ius ad rem medieval. O CC, porém, resolveu ambos os casos com responsabilidade civil extracontratual, o que talvez seja um indicador do sistema de que não há preferência temporal entre duas obrigações no que diz respeito ao cumprimento, mas apenas r.c.e. caso haja má-fé do segundo contratante. No entanto, preciso estudar mais profundamente).