sábado, 11 de setembro de 2021

Camões sobre o sexo

"Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo".

(Lusíadas, Canto IX, 83)

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Index librorum optimorum

Curiosa descoberta: o maior jurista português, Pascoal de Melo Freire, teve suas obras sobre direito civil - ie., o melhor manual de direito civil luso-brasileiro, o Institutiones iuris civilis Lusitani - incluído no Index Librorum Prohibitorum da Igreja Católica em 1836. Parece que esse Index funciona, por ironia, como guia para as melhores obras.

A respeito, diz Cândido Mendes de Almeida, no seu Auxiliar Jurídico (p. 782) o seguinte:

"Cumpre porém notar que este jurisconsulto, posto que Sacerdote, Deputado e amigo da Inquisição, era um decidido jansenista e ultragalicano, pelo que suas obras foram condenadas por Decreto da Congregação no Index de 7 de Janeiro de 1836, sem a cláusula Donec corrigantur, que supõe a boa-fé e catolicidade, como aconteceu com Oliva e Themudo, e ultimamente com o falecido Bispo do Rio de Janeiro, Conde de Irajá, cujas obras foram condenadas por Decreto de 12 de Junho de 1869".

Isto, porém, não impediu que a obra fosse parcialmente traduzida para o português por bacharéis de Olinda; nem que se fizessem Notas a ela - como Lobão -, nem manuais totalmente dali derivados - como Liz Teixeira e Trigo de Loureiro. Além disso, a inclusão da obra de Melo Freire nunca foi bem aceita na tradição portuguesa, como se tira ao Suplemento do Dicionário Bibliográfico Português:





terça-feira, 3 de agosto de 2021

Ensino moderno de línguas estrangeiras

Há algum tempo, procurava esse artigo que o Pontes de Miranda usava frequentemente para citar a si próprio. De fato, é curioso pensar que um jurista brasileiro, aos meros 30 anos de idade, ousasse entrar, numa revista jurídica alemã, em um debate sobre direito alemão e... escrevendo em um alemão perfeito e até curiosamente rebuscado. Esse caráter rebuscado foi justamente o que me chamou a atenção no trecho grifado. Explico:

Em alemão, obwohl (embora) é sempre conjunção; como tal, introduz uma oração que, em tese, precisaria sempre ter verbo. Mas não é isso que se vê na frase: a obwohl, segue-se um sintagma nominal (animistischer Natur) no genitivo, que é inexplicável sintaticamente. Será que Pontes se enganou e usou obwohl em lugar de trotz? Afinal, trotz é preposição e rege genitivo. Pois é, nada disso. O que há aí é algo que as pessoas não aprenderão nem em 50 anos de Goethe-Institut (e digo por experiência própria).

O que há aí é um genitivo absoluto, uma construção nominal que substitui a oração. O genitivo absoluto, que existe também no grego, pode ter mil sentidos e costuma aparecer em expressões mais ou menos fixas, como klopfenden Herzens (com o coração batendo), meines Erachtens (na minha opinião), eines Tages (um dia), etc. O alemão dispõe, ainda, de uma construção elíptica normalmente designada por acusativo absoluto. Por exemplo: Er stand hinter der Tür, den Dolch in der Hand, und bewegte sich nicht (Ele estava de pé atrás da porta, com o punhal na mão, e não se movia). Por qual razão Dolch está no acusativo? Pois é, é um acusativo absoluto e está desligado da regência verbal. O que Pontes de Miranda usou em animistischer Natur é um genitivo absoluto, muitíssimo raro; assim, a construção com obwohl se justifica.
No entanto, não fiz o post para louvar o conhecimento linguístico do jurista, mas para fazer uma reflexão: por qual razão, hoje, conseguir escrever um texto perfeitamente em uma língua estrangeira é algo tão raro e, por conseguinte, tão valorizado? Como disse, essas construções gramaticais jamais seriam explicadas a um estudante estrangeiro, o que evidentemente limita sua capacidade expressiva.
Parece-me que, ao menos desde os anos 60, houve uma mudança no objetivo do ensino das línguas estrangeiras: se antes eram ensinadas tendo por modelo as línguas mortas, que se usam para ler e escrever sobretudo, elas passaram a ser ensinadas com o objetivo de que o aluno saiba de comunicar oralmente. Ora, isso evidentemente é louvável, mas, na perspectiva daqueles que fazem uso acadêmico das línguas estrangeiras, as outras competências - sobretudo leitura e escrita - passaram a um segundo lugar muitíssimo problemático, já que, na prática, não se ensina nada daquilo que fuja à imediatez da experiência imaginada de um estrangeiro. Em outras palavras: imaginam-se as situações que um estrangeiro teria de encarar - comprar coisas, tirar documentos e licenças, manter conversas superficiais - e dão-se-lhe aqueles instrumentos básicos para conseguir cumprir essas funções; e nada mais. Todo o resto do percurso tem que ser feito individualmente.
Lembro-me, nesse ponto, quando estava nos últimos níveis de alemão do Instituto Goethe e, dado um trecho inicial do Fausto de Goethe - que, acreditem, não é tão difícil -, a quase totalidade da sala não era sequer capaz de entender o assunto de que se tratava ali. E eu percebi logo a razão: como todo o ensino era dedicado a instrumentalizar linguisticamente um conjunto de situações imaginadas, toda situação que fugia a esse conjunto apresentava dificuldades insuperáveis aos alunos. Afinal, o ensino das línguas hoje não me parece mais dar a autonomia que é necessária para que o estudante faça aquilo que ele quiser com a linguagem. É o resultado dessa mudança que nos faz parecer grandiosa essa anedota que relatei do Pontes de Miranda; mas é bom lembrar que, décadas antes, Tobias Barreto havia editado um jornal em alemão.
Enfim, pôr as línguas em contato com situações sociais pode ser um recurso pedagógico interessante, mas não pode desconsiderar o fato de que a língua é uma estrutura com razoável grau de independência dessas mesmas situações e, por isso mesmo, o ensino da língua, considerado todos os níveis, deve dar todos os instrumentos necessários à expressão autônoma do aluno.



Tres linguae sacrae

Em uma única página de Hugo Grócio, temos: a) texto em latim, como todos da época; b) citações em grego, a maior parte sem tradução; c) algumas palavras em hebraico, que o autor, muito generoso, traduz para o grego.

São as tres linguae sacrae, cujo estudo ganhou força com a Reforma e o Renascimento.


(Trecho de De iure belli ac pacis, 2ª ed., Amsterdã, 1631, p. 4)

Como refutar um autor sem lê-lo

Thibaut - que sempre fica como o perdedor da briga com Savigny a respeito da codificação - era um polemista nato. Veja-se, por exemplo, esse trecho que traduzo abaixo, tirado às suas Civilistische Versuche I, sobre uma dissertação de Huber (como praeses):

(Na Dissertatio de iure in re, quae est res nullius, Hal[le], 1779. [Discordo] por qual razão? Não sei, pois não li esse estudo, nem quis lê-lo, pois a filosofia do autor, que parece partir justamente disto - isto é, emaranhar conceitos filosóficos -, e virar tudo de cabeça para baixo, me torna hipocondríaco assim que começo de ler suas explicações)


O Imperador da língua portuguesa

Não garanto, mas é possível que este seja o mais belo parágrafo metalinguístico já escrito em língua portuguesa. Afinal, Pessoa não chamaria a um qualquer Imperador da língua portuguesa:

(Pe. Antônio Vieira, Sermão da Sexagésima, V)

Doutrina estrangeira: ler ou não ler?

Eis a primeira parte do Tractatus de Executionibus, de Silvestre Gomes de Moraes, autor português do séc. XVII sobre cuja obra Pontes de Miranda afirmou, no Prefácio aos seus Comentários ao CPC, que ela "versou tôda a matéria da fôrça e do efeito executivo dos instrumentos e das sentenças. É a obra capital para estudo do Livro VIII do Código". Trata-se, portanto, de um dos principais autores dedicados efetivamente ao direito luso-brasileiro, e não ao direito comum, como tantos portugueses antes dele - basta lembrar-se de Agostinho Barbosa, Francisco Caldas ou Álvaro Vaz. S. Gomes de Moraes queria interpretar as Ordenações do Reino de Portugal, e não as fontes do direito comum, como o Digesto ou o Codex.




No entanto, como o faz? Já o início da sua obra o diz: o entendimento do direito português só pode ser alcançado por meio da comparação com outros direitos nacionais, além, é claro, dos direitos comuns - civil e canônico. É por meio desta comparação que se vai construir o direito português, isto é, dotar-lhe de conceitos dogmáticos, tirado à tradição pretérita comum e aos incipientes direitos nacionais. É preciso sobrepor à fonte primária uma camada dogmática, cujos conceitos não devem e nem podem ser elaborados do zero: é preciso recorrer seja a uma tradição pretérita, seja às discussões contemporâneas sobre direitos estrangeiros aparentados. Não se trata, portanto, de verdadeira comparação, mas de construção.
Por qual razão isto é importante? Pois o procedimento dos (bons) juristas brasileiros segue sendo o mesmo. Diferente do que acontece no direito alemão ou no francês, que também são filhos do direito comum no que diz respeito ao conteúdo de seus ordenamentos, o direito brasileiro é duplamente filho do direito comum: seja no conteúdo, seja na metodologia. Nossos manuais tradicionais ainda apresentam cada instituto jurídico principiando pela definição de direito romano - sempre visto à luz das categorias do direito comum - para, depois, mostrar em que o direito brasileiro "se desviou" desta tradição. Outros autores, não raro, principiam suas discussões in medias res, isto é, tecendo suas considerações como se adicionassem um capítulo à tradição comum. Aqui podemos ver uma outra perspectiva da bela figura de Dworkin - que imaginava, no sistema de common law, que uma nova decisão sobre um assunto funcionava como a adição de um novo capítulo a um livro escrito por outras pessoas. O que lá Dworkin via ocorrer nas decisões dos Tribunais, ocorre aqui na doutrina: é como se cada doutrinador adicionasse um novo capítulo a essa tradição comum.
Como método, essa construção pseudo-comparativa é muitíssimo perigosa, e deve ser reservada apenas a pessoas que dispõem de conhecimento sistemático do ordenamento de origem e do de destino. A razão está em que há constantemente uma tentação a transpor o regime alienígena ao brasileiro, que só pode ser superada pela consciência sistemática de cada um deles. É exatamente o que se pergunta Silvestre Gomes de Moraes no título abaixo: aquilo que estrangeiros escreveram sobre o seu direito pode ser trazido para o direito português? É justamente esta questão que deve nos ocupar diuturnamente ao ler obras estrangeiras.

Petições: longas ou curtas?

A questão não é nova. O direito luso-brasileiro, a julgar pelos formulários dos libelos de Caminha e Correa Telles, favorecia petições curtas, muito mais curtas que as que se veem hoje no foro. Mas é possível também que situações complexas exijam mais e mais páginas. Como justificar uma alegação "de nimis longa"?

Tratado da Forma dos Libellos de Gregório Martins Caminha: editado pela primeira vez em 1549, é o mais antigo formulário do direito luso-brasileiro.

Na década de 1670, os herdeiros da Casa do Conde de Vimioso, a quem havia sido atribuída a Capitania de Pernambuco, resolveram processar a Coroa Portuguesa por não lhes ter devolvido a posse da capitania após a derrota dos holandeses, que haviam invadido a região. Fizeram-no contratando o então melhor advogado da Corte, Manuel Álvares Pegas - ele, o subido comentador das Ordenações em 15 volumes (e nem terminou o livro III!), autor das Resolutiones Forenses em três volumes, e de um Tratado sobre os Morgados em cinco volumes, todos em latim.

Frontispício da Alegaçam (1671)

Pegas, como bom advogado, sabia que apresentar uma peça de 100 páginas podia estarrecer os julgadores; e, como bom advogado, adiantou-se à crítica, citando, numa alegação redigida em português - língua obrigatória no foro! - duas autoridades latinas:



Non sunt longa quibus nihil est quod demere possis
(Não são longas <as obras> das quais nada podes tirar)
Marcial

At quaedam supervacua dicuntur etiam, sed satius
est et haec dici, quam non dici necessaria
(Porém, algumas coisas <ditas> são consideradas irrelevantes. Vá lá. Mas é melhor que elas também sejam ditas a que não se digam as coisas necessárias)
Plínio Jovem

segunda-feira, 19 de abril de 2021

A objetividade da dogmática jurídica: uma anedota

Alguns dias atrás, fui assaltado por uma dúvida de direito civil. Estudando uma questão específica, não encontrei, no direito civil brasileiro, uma regra que regulasse certo problema. É o seguinte: digamos que A venda o mesmo objeto a B e C. Sabemos que ambos os contratos são válidos e eficazes, mas apenas um deles (se muito, rs) poderá ser cumprido. Que adquira a propriedade, entre B e C, aquele que receber por negócio dispositivo (tradição ou acordo registrado), todos sabemos. Mas e antes da tradição, quando ambos os contratos podem ser potencialmente cumpridos? Existe, no direito brasileiro, uma regra que imponha o princípio prior tempore, potior iure aos negócios obrigacionais? Que haja nos negócios dispositivos - como na constituição de direito real sobre coisa alheia - também não tenho dúvida. Essa questão poderia ser relevante em um caso de oposição de terceiro: B, primeiro comprador, descobre que C ajuizou ação pedindo a entrega da coisa com base na compra-e-venda; B, então, opõe-se a ambos no processo, pedindo que a coisa lhe seja entregue, por ser o primeiro comprador. Quid iuris?

Fiz então o que costumo fazer: joguei a questão em um grupo de WhatsApp com três amigos, jovens e brilhantes civilistas, pra ver se me davam uma luz. E fiquei muitíssimo impressionado com o resultado da discussão. Basicamente, eles pegaram situações ligadas à fraude contra credores para resolver o problema: afinal, B teria um obstáculo no recebimento da coisa apenas se C retirasse, do patrimônio de A, o bem que constituía objeto da prestação entre A e B. Trouxeram também argumentos ligados à execução (dupla penhora sobre único bem) e privilégios creditórios, que são todos institutos relacionados. O problema, evidentemente, era saber como lidar com a insolvência, que simplesmente poderia não se verificar em certos casos.

Na ilustração, alguém se candidatando a uma prebenda (Pfründe)

Essa discussão me deixou muito impressionado, pois meus colegas, em 2021, chegaram ao mesmíssimo resultado que os doutores do direito comum. Neste, surgiu uma curiosa figura - a do ius ad rem - que, apesar de estar ligado ao adimplemento de um contrato obrigacional (ou assemelhado), tinha certas peculiaridades que, à época, eram vistas como indicador de caráter real, como a execução específica da obrigação e a oponibilidade, seja aos terceiros de má-fé e até aos de boa-fé, se a título gratuito. O instituto nasceu um pouco do direito canônico (para regular a situação daquele que era eleito ou apresentado para determinado ofício eclesiástico, mas ainda não recebido a colação) e um pouco do direito feudal (caso do vassalo que fizera o contrato de enfeudamento, mas não recebera a Gewere/investitura), mas teve sua forma final em Jasão de Maino e Baldo. Como que esses velhos doutores romanizaram o instituto tirado aos feudistas e canonistas? Entenderam haver aí uma actio in factum revocatoria, isto é, uma ação pauliana - fraude contra credores -, mas "in factum", pois ela era aplicada como se por analogia, já que se dispensava o requisito da insolvência. Este ius ad rem estava previsto, por exemplo, no Codex Maximilianeus bavaricus civilis (1756) e no Allgemeines Preußisches Landrecht (1794) e, na Alemanha, foi revogado só com o BGB. A actio in factum revocatoria ainda era objeto de comentário em plano séc. XIX!

Jasão de Maino

Não é impressionante que meus colegas tenham chegado à mesma solução dos doutores de 800 anos atrás, sem conhecer a tradição nesse ponto específico? Como que podemos compreender isso? Para mim, a questão-chave está em reconhecer que o direito civil é pensado, conhecido e produzido sempre de forma sistemática. O sistema, ao organizar as partes do todo, limita fortemente as possibilidade de soluções jurídicas ainda que não se conheça a totalidade do sistema; basta conhecer, nesse sentido, as estruturas básicas do sistema e alguns institutos jurídicos em que tais estruturas são aplicadas. Por outro lado, isso contém os problemas: se uma previsão específica discorda de todo o restante, é sempre possível vê-la como exceção de uma regra não-escrita menos evidente, mas que se conhece pela frequência com que surge em concretizações específicas ao longo de um Código. Isso permite que se fale sobre partes do sistema sem conhecer a totalidade do restante. Ressalto a importância das estruturas, pois são elas que não mudaram do direito romano para cá, ao passo que os institutos jurídicos em específico sofreram diversas alterações e ressistematizações.

Codex Maximilianeus bavaricus civilis

Escrevo isso por ver hoje muitos colegas do direito - e de fora dele também - julgando que o raciocínio jurídico - e, sobretudo, a dogmática jurídica - tenham um estatuto epistemológico desprovido de objetividade; isto é, como se o direito fosse "mera argumentação", como se toda conclusão carregasse em si forte caráter de opinião, com baixa possibilidade de controle interssubjetivo por uma comunidade científica. Balela! Se o sistema não contivesse estruturas profundas dotadas de alto grau de objetividade, meus colegas, incônscios das opiniones iuris dos velhos doutores, apenas por um golpe de invejável sorte teriam chegado a tal conclusão.

A investidura feudal: quando feita fora do terreno,
diz-se investitura abusiva ou impropria.

Parece-me que a consideração dessa subjetividade seja especialmente importante para os trabalhos de teoria e metodologia do direito, já que há, no Brasil, um estranho hábito de as pessoas dissertarem longamente sobre a dogmática jurídica sem que nunca antes tenham empreendido uma pesquisa dogmática. De fato, é a única explicação para algumas conclusões que vemos por aí. Todos os que já experimentaram fazer tal tipo de pesquisa, já experimentaram também a sensação de pensar uma argumento e vê-lo concretizado em um autor desconhecido e distante no tempo. Alguma explicação há de haver!

No sistema, tudo está ligado

(Para quem se interessou pela questão jurídica, noto que o ius ad rem não parece existir como tal no CC, mas algumas situações a ele ligadas - como o desrespeito ao direito de preempção na compra-e-venda e o aliciamento de trabalhadores na prestação de serviço - são situações às quais se aplicava o ius ad rem medieval. O CC, porém, resolveu ambos os casos com responsabilidade civil extracontratual, o que talvez seja um indicador do sistema de que não há preferência temporal entre duas obrigações no que diz respeito ao cumprimento, mas apenas r.c.e. caso haja má-fé do segundo contratante. No entanto, preciso estudar mais profundamente).

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Uma decisão exemplar: a metodologia do direito luso-brasileiro

Hoje analiso e traduzo abaixo um parecer do jurisconsulto português, Álvaro Vaz ou Valasco - cuja biografia, na Wikipédia, criei há poucos dias - que pode ser considerada uma decisão exemplar. E por qual razão? De um lado, ela resolve uma questão jurídica nos moldes típicos do raciocínio jurídico que se empregava no direito comum português; por outro lado, ela se destaca por, necessitando descolar-se da literalidade da lei, o jurista ter de explicitar de forma quase teórica sua metodologia interpretativa.

Álvaro Valasco
(1524-1593)

A situação fática poderia aparecer hoje no foro: alguém alugou um imóvel do proprietário. No entanto, o imóvel foi penhorado, executado e quem o comprou no leilão público foi justamente... o locatário. Finda a locação, é preciso que ele devolva a coisa? Esta questão não é tão simples: a princípio, a resposta seria positiva, pois o fato de o locador ter perdido o direito de propriedade sobre a coisa não importa em extinção da locação, pois ela não é negócio dispositivo, mas obrigacional; o poder de disposição sobre a coisa não é requisito da eficácia da locação e, portanto, sua perda superveniente não importa para a relação de locação. O que importaria seria a perda da posse (evicção). Logo, a conclusão a que chegaríamos é a de que o locador mantinha a pretensão contratual à restituição da coisa. No entanto, uma vez restituída a coisa, o locatário, que havia se tornado proprietário, poderia reivindicá-la de volta. Haveria, por assim dizer, um joguete jurídico: o locatário pediria, por pretensão contratual, aquilo que ele estaria obrigado a restituir logo que entrasse na posse da coisa, pela pretensão reivindicatória do locatário, novo proprietário da coisa. 


A resolução do impasse passava, porém, por uma legislação pouco técnica. À época, as Ordenações Manuelinas dispunham, no Livro 4, Tít. 59, §3º, que o locatário ou comodatário não poderiam, no momento de restituir a coisa, questionar a propriedade do locador ou comodante. A norma - que segue implicitamente vigente no sistema de direito civil contemporâneo - tinha dois objetivos: (i) tornar contratos obrigacionais, como comodato e locação, independentes da propriedade (ou, modernamente, da titularidade do poder de disposição), justamente por serem simplesmente obrigacionais; (ii) impedir que se visse, no tempo decorrido desde a entrega da coisa, paralisação ou extinção das ações contratuais ou reivindicatórias. O problema era a expressão "por alguum titulo", em que alguum, em uma frase negativa, recebe o sentido de nenhum. Como lidar com essa exclusão peremptória?

Foi por esta razão que o Álvaro Valasco teve de refletir a respeito do problema da interpretação das leis e, por conseguinte, sentiu-se obrigado a explicitar certos aspectos metodológicos que não eram exclusivamente seus, mas permeavam a cultura jurídica daquele momento. Seguir a literalidade significaria construir um joguete jurídico; desviar imporia uma longa argumentação. Não hesitando em adotar a segunda opção, o jurista tinha ainda outro obstáculo: como desviar na literalidade sem dizer que estava interpretando as Ordenações? Ora, se modernamente ninguém negaria que a interpretação é um processo intransponível na compreensão de um texto, dessa mesma liberdade não gozaria um jurista quinhentista português com a proibição de interpretação que havia nas Ord. Man. Livro 5, título 58, §1º. Em caso de dúvida de interpretação, era preciso que os Desembargadores a levassem à mesa grande para resolver na presença do Regedor. Irresoluta a dúvida, o Regedor faria saber ao Rei, que a resolveria, num claro caso de devolução progressiva da jurisdição. O Desembargador que desobedecesse à regra teria de pagar pena pecuniária às partes e sofreria punição administrativa:


Para que o argumento fosse aceito, e que algum juiz o acatasse, era preciso provar que ele não realizava uma interpretação no sentido que as Ord. haviam condenado. Adotar um sentido amplo de interpretação seria mesmo contraproducente, afinal, se toda atividade jurídica é interpretativa, então todo caso deveria ser levado ao Regedor? Quantas consultas seriam feitas a El-Rei? Essa "interpretação" - ah, o ciclo hermenêutico! - não contradiria a própria criação de um sistema de distribuição da justiça, gestado por juízes, desembargadores, ouvidores, etc.? Além disso, um jurista escolado na leitura das Ordenações sabia muito bem que a precisão conceitual não era o seu forte. Nas Ordenações, vê-se claramente que se prefere dar uma exposição alongada - e, por vezes, no melhor estilo luso, prolixa - das razões que levaram o monarca a adotar certa regra, ao passo que os conceitos jurídicos propriamente ditos aparecem mais como exemplos que como limitação da abrangência de sua aplicação. Basta ver que, no trecho comentado, emprestar, entregar, arrendar e alugar aparecem sem grande preocupação de distinção dos conceitos. Já o "entendimento" que as Ordenações mencionam parece ser uma forma de compreender a finalidade da norma - o que, como mencionado, casaria bem com o esforço na exposição das razões da norma.

Mas dizê-lo assim fortemente poderia atrapalhar a recepção do argumento: fortiter in re, suaviter in modo. O melhor caminho era fazer aquilo de que a escolástica gostava tanto: distinguir. A distincio, que adicionaria alguns adjetivos ao termo original (interpretatio), poderia demonstrar, assim, que existem duas formas de interpretar: a interpretatio hominis e a interpretatio iuris

A primeira - interpretação do homem - é aquela frívola, capciosa; a adjetivação parece remeter à interpretação que beira a má-fé, que subverte o sentido da legislação, esvazia-a de sentido e usa a literalidade como instrumento. Essa interpretação muito provavelmente merece o adjetivo hominis justamente por estar ligada à interpretação partidária, isto é, aquela que defende interesses no foro. A iuris, por sua vez, é o oposto disto: é a compreensão da norma a partir das categorias e valores jurídicos presentes na tradição. Veja-se que a interpretação de Valasco foi exatamente esta: ao perceber que havia concorrência de dois títulos, resolveu reapresentar o problema colorindo-o com os conceitos herdados da tradição jurídica - e que, por conseguinte, permitiriam saber qual dos dois devem prevalecer. (O critério da temporalidade, empregado na resolução, é um dentre tantos outros: hierarquia, especificidade...) Vê-se claramente que para o autor a tradicional dogmática jurídica - o conjunto de conceitos, teorias e a metodologia que ensina a aplicá-los - guarda certa autonomia em relação ao texto legislativo de cada jurisdição. É por isso que a interpretação racional é aceita: há a necessidade de uma espécie de conversão dos termos comuns (palavras tão genéricas!) aos conceitos tirados à dogmática jurídica.

É evidente que uma tese que, no conteúdo, era tão metodologicamente ousada precisaria recorrer, na forma, ao estilo comum de defesa aprovado pelos seus pares. São naturais, portanto, as diversas citações dos comentadores Bártolo de Saxoferrato e a menção de Baldo de Ubaldo, sobretudo no §7º. Neste passo, devemos lembrar que os comentadores não hesitavam em se afastar da interpretação literal, sacrificando conceitos jurídicos em prol da resolução de problemas práticos. É exatamente esse o estilo que, por séculos, adotaram os praxistas e decisionistas portugueses e que até hoje produz seus frutos numa tradição jurídica como a brasileira.

A menção a Bártolo é interessante, posto esperada, pois é justificada de uma forma ampla: o direito reinícola teria recebido todas as interpretações do direito comum. Isso não era a revogação do direito reinícola? Parece que não: a recepção do direito comum estava ligada à utilização de uma metodologia de interpretação das fontes jurídicas - romanas ou reinícolas - que ia muito além da solução de determinado caso; na verdade, abrangia um imenso repertório de conceitos, brocardos e exemplos que aguçavam o olhar do intérprete (iuris!) e refinavam a argumentação jurídica. É esse repetório que está abrangido quando se fala que o direito reinícola recebe todas as interpretações: interpretatio está aí muitíssimo próxima do que, no séc. XIX, chamar-se-ia construção jurídica. De fato, isso levava, por vezes, à identidade de soluções, mas esta não era uma consequência necessária da metodologia. Se juristas posteriores, vulgarizando essa importante distinção, revogavam o direito reinícola para pôr Bártolo em seu lugar é outra questão; aos vulgares não se une o grande Valasco.

Dogmaticamente, o que Valasco conseguiu em seu parecer? Ao defender que o locatário não era obrigado à restituição da coisa para depois cobrá-la pela reivindicatória, ele empregou um brocardo do direito comum dolo petit quod statim redditurus est (age dolosamente aquele que pede a entrega de uma coisa que deverá ser imediatamente devolvida) - e que hoje vem sendo entendido como concretização da boa-fé objetiva. Apesar de não ter mencionado expressamente o brocardo, outros pareceres produzidos no caldo cultural luso-brasileiro resolverão a mesmíssima questão aplicando esse princípio, sob influência de Valasco. Não deixa de ser irônico que, passados três séculos de "evolução" jurídica, o TJ-SP tenha, nos idos dos anos 20, ordenado que o locatário devolvesse o imóvel ao locador, mesmo já tendo adquirido a propriedade em hasta pública!

Seu parecer mostra ainda certas peculiaridades do direito luso-brasileiro. Como já disse acima, a locação não se extingue pela perda da propriedade do locador; para que haja resolução do contrato de locação, é preciso que haja evicção. No direito luso-brasileiro, porém, a questão não é tão simples: como a forma tradicional de exploração do território português se deu pelo emprazamento de terrenos, o instituto jurídico da enfiteuse - muitíssimo aparentado à locação, aliás - abarcou este último, na modalidade da locatio ad longum tempus (i.e., por mais de dez anos), que, por influência de um comentário de Bártolo, passou a ser oponível ao adquirente a título singular, fundindo-se, assim, à estrutura dos direitos reais. Um alvará de D. Maria I resolverá a questão em meados do séc. XVIII. Porém, caso ainda se entenda a locação como direito real, a opinião de Valasco se justifica: sendo negócios de disposição, a perda superveniente da propriedade do concedente implica a extinção da relação jurídica, seja de enfiteuse, seja de locação. A verdade é que a possibilidade de a constituição da locação como negócio de obrigação é implicitamente admitida por Valasco quando admite que alguém, por erro, alugue coisa própria como alheia; nos direitos reais, seria impossível, salvo pouquíssimas exceções - nenhuma delas admitindo erro neste ponto - pela consolidação do domínio.

Mas há algo muito mais profundo nessa decisão. Ao admitir essa defesa do locatário, o que Valasco fez era, na verdade, mudar a relação que os direitos reais e os direitos obrigacionais estabelecem. É preciso perceber que o conflito, no caso em tela, dava-se entre uma pretensão real (reivindicatória) e uma pretensão contratual, nascida do contrato de locação. A questão é que, como as pretensões contratuais, nascidas de negócios de obrigação, desprezam a atribuição do poder de disposição, nasce um vasto campo para conflitos cuja resolução, vista em partes isoladas, implicaria a restituição de algo que deveria ser logo depois devolvido ao restituinte. Da mesma forma, ao falar da renúncia a outros títulos de restituição ao receber a coisa como alugada, Valasco está resolvendo potenciais conflitos entre direitos obrigacionais e entre obrigacionais e reais. Ao dar essa solução, Valasco corrigiu um problema estrutural dos direitos romano-germânicos e diminuiu a independência conflitiva desses dois campos.

E hoje, em que importa ainda este velho contemporâneo de Camões? Hoje, uma época em que a literalidade vem usada como carta na manga - isto é, afastada quando não convém, mas usada como argumento de autoridade papinianesca quando convém -, é oportuno relembrar um exemplo de refinamento de raciocínio jurídico, em que a qualidade do argumento não se mede nem pela proximidade nem pela distância da literalidade, mas antes pelo grau de respeito textual, justificação pormenorizada e verificabilidade teórica.


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ÁLVARO VALASCO

DECISIONUM, CONSULTATIONUM AC RERUM IUDICATARUM 
IN REGNO LUSITANIAE LIBRI DUO
(Dois livros de decisões, pareceres e coisas julgadas no Reino Português)

PARECER XLII

Do locatário de uma casa que, durante a locação, compra-a em hasta pública; se está ele autorizado, com base no novo título, a defender-de do locador, que o aciona pela ação da l. si quis conductionis, C. locati.

SUMÁRIO

  1. Fatispécie
  2. Locatário, uma vez finda a locação, não pode reviver nenhuma questão sobre o título contra o locador.
  3. Limitação: a não ser que, após a celebração da locação, sobrevenha alguma nova causa que autorize a recusa à restituição
  4. Sobre a lei do Reino [Ord. Man.] livro 4, tit. 59, §3
  5. Aquele que aluga coisa própria crendo ser alheia pode levantar questão sobre o domínio?
  6. Ninguém pode, por si só, mudar a causa da sua posse, a não ser se demonstrado por causa extrínseca.
  7. Sobre a Ord. [Man.] livro 5, tit. 58, e de que forma devem ser interpretadas as leis deste reino em casos dúbios
Alguém alugou um prédio do proprietário e, durante o tempo da locação, [1] um credor do proprietário do prédio obteve sentença contra o dito proprietário-locador, e executou-lhe o prédio. Ao vendê-lo em hasta pública, foi [o prédio] comprado pelo dito locatário, que foi imitido na posse tendo por título a compra-e-venda. Posteriormente, o locador acionou o locatário pela ação da l. si quis conductionis, C. locati & l. Real [Ord. Fil.], livro 4, tít. 59, §3 [mod: ação de despejo], segundo a qual o locatário não pode, uma vez terminada a locação, "Dizer que a cousa alugada lhe pertence per direito e per titulo alguum". [2] Pergunta-se se o locatário, com base em novo título, recebido de outra origem, pode contestar, de forma que a coisa alugada não seja imediatamente entregue ao locador. E parecia não poder, pois o dito §3º não admite nenhum questionamento sobre o título ao dizer "Per titulo alguum", que excluem literalmente todo título, seja anterior à locação, seja posterior, pois a negação universal nega a totalidade, leg. si is quis ducent, § utrum, "Qui cum significatio non ex universo" & ibi Dd. de rebus dubiis. Ocorre, porém, que a lei do Reino não admite que as leis régias sejam interpretadas em caso de dúvida, a não ser na forma do livro cit., tit. 58, §1. Aqui, porém, estamos em dúvida se o texto do §3º, especificamente a expressão "Per titulo alguum" exclui também o título que sobreveio de outra origem em favor do locatário após a locação da coisa? E etc.

[3] Decerto, não obstante o dito anteriormente, respondi que a dita lei Régia deve ser entendida restringindo-se-a ao título havido anteriormente à locação. Assim, sendo posterior, citei Alb. in l. si quis fundum, §ff. loca., que assim limita a l. si quis conductionis, de não haja procedência quando, após a locação, sobrevenha ao locatário nova causa de não restituir, seguindo Jas. in consilia 158, colum. fin. ver. quinto principaliter, liv. 2,. Plotus in l. si quando, n. 193, vers. fallit secundo. E, nos nossos termos, quando o locador foi condenado e a coisa locada foi adjudicada ao vencedor na execução, e este a vendeu ao locatário, deu pareceu Jas. consi. 158, colum. 1 versic. ultra eorum, libr. 2. Daí, o direito do locador foi extinto com a adjudicação da coisa e, por conseguinte, também se extinguiu o direito do locatário, l. ex vectigali, ff. de pig. E passou ele a possuidor por novo título, não por nova causa. E isso que foi dito encontrei recentemente, após ter dado a resposta, defendido em Jaco. Menoch., tracta. de remediis recuperanda in unecimo remedio, num 42 & 43. E está é a necessária interpretação da dita lei Régia.

[4] A isso não obstam as palavras da lei Régia, especificamente "Per titulo algum", pois estas palavras tão genéricas devem ser restringidas a termos jurídicos, isto é, ao título havido anteriormente à locação, pois se presume que o locatário renunciou àquele outro título de restituição da posse a si, argum. l. si aliquam rem, ff. de acquir. posseßio. cum adnotatis ibi per Ripam, post alios, Corn. cons. 301, col. pen. liv. 1. argum. si quis ante, &¨ibi notat ff. eod. tit. [5] E, por isso, se alguém alugar por erro coisa própria, julgando-a ser alheia, não se aplica o  l. si quis conductionis, ut per Curt. senio. cons. 71. col. 2, & Menoch. ubi supra, nu. 40. Assim se admitirmos evidentemente a contestação do locatário, ele terá adquirido a propriedade sob o novo título da compra-e-venda em hasta pública. Porém, duvido que os nossos juízes admitam essa limitação à dita lei Real, pois não é muito provável tal ignorância.

[6] O que foi dito acima é provado pelo fato de que não se admite que ninguém mude a sua causa de posse, l. cum nemo, C. de acquir. possess. ubi not. Paul. &omnes, Deci. cons. 500, num [?], Peralta, l. 3 §qui fideicommissariam, numr. 36 ff. de hered. instit. & bene explicat Socin. cons. 131, nu. 7, liv. 1. Guillelmo Cassadorum in Rot. decis. 4 ad fin. Isso é, porém, verdadeiro, a não ser que se manifeste por causa extrínseca, ut d. l. cum nemo, especificamente: "Nulla extrinsecus accedente caussa". Como, portanto, demonstrou-se novo título e causa, deve-se ouvir o alegado no mérito pelo locatário, e a lei régia deve ser restringida, de forma que não se aplique ao novo título adquirido publicamente e sob autoridade do juiz após a locação.

[7] Em segundo lugar, [essa argumentação] não é refutada pelo fato de as leis régias não poderem ser interpretadas em caso de dúvida, a não ser na forma do tit. 58 do liv. 5. Aqui, não nos parece haver dúvida, pois há lei muito semelhante assim declarada pelo direito comum, a saber, l. si quis conductionis. Além disso, entende-se proibida a interpretação injusta, não a justa e a racional, tal como a doutrina de Bártolo in l. omnes populi, ad fin. 6. q. princip., onde ele diz que se recusa a interpretação frívola, mas não a racional, conforme nota in cap. ex parte 2 de offic. deleg. Além disso, a interpretação extensiva e racional não parece ser excluída, Socin. l. I, n. 4, ff. si cert. peta. Curt. Iun. cons. 5 & 6, nu,. 3. E é dito alhures que é lícito à lei simplesmente proibir interpretações às leis Régias, mas deve-se entender por isso a interpretação capciosa e frívola dos homens, e não a interpretação de direito, ex tec. & ibi not. cap. cum in iure, de offic. deleg. tradit Chassan. de Burgun. rubr. 2 fol. 88, nu. 13, col. 3 & seqq, & n. 15. De fato, não se admite de direito comum que se interpretem as leis, a não ser ao Imperador, l. leges, 4 §1, C. de legibus. Porém, é lícito as declarar segundo o verdadeiro sentido, e consoante ao direito, ex. Bart. l. omnes populi, quaest. 6, vers. tertio quero, n. 65 de instr. & iur. Bald. in l. iubentus, §fin. C. ad Trebellia, & in l. 3. C de lib. praeter Paul. l. 1  in princip. col. fin., ff. si certum peta. Donde concluem Alex. e outros mais novos, Ias. cons. 50, lv. 1. Eu adiciono também que as lei Régias recebem todas as interpretações que o direito comum recebeu em tal casos, ut per Domin. cap. licet canon, de electio. liv. 6 vers. nota bene istud. Do exposto a respeito da questão proposita, deve-se julgar em favor do locatário em razão do novo título oriundo de origem diversa e havido posteriomente à locação. Que se leiam as demais limitações completas, ad. dictam leg. si quis conductionis, & consequenter ad dictam leg. Regiam, tit. 59, §3, liv. 4, disse copiosa e brilhantemente Menoch.d.remed. II ex n. 35, pag. 454.

sábado, 26 de dezembro de 2020

Cátedras e confusão

Não é de hoje que a briga pelas cátedras dá baixaria e confusão. Precisamos convir, porém, que outrora isso se fazia de uma maneira mais requintada. Neste caso, de Belchior do Amaral, a invectiva se deu em poesia e em latim. Nada mal, não?



(Tirado da Bibliotheca Lusitana, de Diogo 
Barbosa Machado, Tomo I, 1741, p. 485)

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

O latim e o mundo, o grego e a erudição

"Os juramentos de Estrasburgo demonstram esse modo de ver. Na versão românica começam assim: 'pro deo amor et christian poblo et nostro comun salvament'. Isto muito se aproxima do latim. Ao contrário, em alto alemão antigo: 'in godes minna ind in thes christianes folches ind unser bedhero gehaltnissi'... É um mundo linguístico inteiramente diverso. O romano pôde ainda por muito tempo valer-se de um latim mais ou menos corrompido e, partindo daí, familiarizar-se com a latinidade correta. O germano, por seu lado, teve que aprender o latim radicalmente como língua estrangeira - e aprendia-o logo corretamente. Por volta de 700, escreve-se na Inglaterra um latim admiravelmente puro, ao passo que na França reina a decadência. Mesmo grandes eruditos italianos podiam cometer deslizes gramaticais, de que riam os monges alemães. Tal é o caso de Gunzo de Novara, que em 965 chegou à Alemanha, no séquito de Oto I, e, em conversa com os monges em St. Gallen, declinou um caso erradamente. Justificou-se, em carta, de que fora acusado injustamente de ignorância gramatical, 'embora às vezes eu seja estorvado pelo uso de nossa língua popular, muito próxima do latim'".

(E. Curtius, Literatura Europeia e Idade Média Latina)

***
Mosteiro de St. Gallen

A carta de Gunzo de Novara (impressa na Patrologia Latina, vol. 136) pretende ser uma aula de erudição. Tentando justificar seu erro gramatical, parece ele ter dispendido muito do tempo de sua vida em encontrar situações em que respeitáveis autores latinos tivessem também empregado uma declinação onde outra seria inesperada. Sua carta é, por assim dizer, uma compilação de situações excepcionais, mas interessantes.
Invehit in monachum S. Galli, qui quod grammaticaliter in casu quodam errasset, ipsum contemptui habuerat, ostenditque se et in grammatica et in aliis liberalibus studiis eruditum

(Enviou <a epístula> contra um monge de St. Gallen que, como <o autor> houvesse errado um caso gramatical, desprezara-o, mostrando-se  <o autor> erudito em gramática e em outras artes liberais)

Pela leitura da carta, parece, de fato, que o autor seria um homem de grande erudição. Ele chega, inclusive, a citar um trecho de Homero em grego! Como, no entanto, tinha ele acesso ao grego, numa época em que essa língua já era tão pouco compreendida na Europa? O caso é uma citação tirada à Eneida de Virgílio. O poeta, em vez de empregar o genitivo "Latagi", utiliza o acusativo "Latagum": "Latagum saxo atque ingenti fragmine montis / Occupat os faciemque adversam". Gunzo, porém, não se dá por satisfeito em notar isto, mas fornece a fonte de inspiração do poeta. Segundo o monge, 

Quae figura apud Latinos rarissime, apud Homerum frequens (invenitur, ut est iliud Ecrousen Achillen ton poda, id est percussit Achillem pedem).

Esta figura, raríssima entre os latinos, é frequente em Homero, encontrando-se, por exemplo, em  ἔκρουσεν Αχιλλέα τόν πόδα, isto é, feriu Aquiles no pé.

É nessa citação, que fez para emular a mais alta erudição, que suas pretensões caem por terra. Por mais que o acusativo de relação, de fato, exista em grego e seja comum em Homero, a verdade é que o trecho "citado" não consta em Homero! Estranha-se também o uso do acusativo Achillen - que seria o acusativo regular se Aquiles fosse substantivo das duas primeiras declinações em grego (-n), o que não é o caso; a forma correta é Αχιλλέα, isto é, Achillea, de terceira declinação (-a). A recolha do trecho não se deu, portanto, da leitura de um trecho original, mas de uma anotação que Serviano fizera aos seus comentários ao trecho na Eneida: é provável que o monge tenha inspecionado a obra para encontrar situações excepcionais de emprego das declinações, mas, sem conhecer o grego (e, talvez, a própria tradição latina com profundidade), não compreendeu que o acusativo de relação é uma das funções do acusativo. Serviano, ao comentar o Livro X da Eneida, diz:

698. LATAGUM OCCUPAT OS pro "Latagi occupat os". et est Graeca figura, in Homero frequens, ut si dicas ἔκρουσεν Αχιλλέα τόν πόδα, id est Achillem percussit pedem pro percussit Achillis pedem.

(698. LATAGUM OCCUPAT OS em vez de "Latagi occupat os". É figura grega, frequente em Homero, como se dissesses  ἔκρουσεν Αχιλλέα τόν πόδα, isto é, feriu Aquiles quanto ao pé, em vez de feriu o pé de Aquiles).

Encontram-se aqui e acolá algumas referências a essa situação. A epístola interessou aos estudos históricos especialmente pela possibilidade de desafiar a ideia de que o grego não era mais conhecido dos autores latinos nesse período da Idade Média. Porém, se tinha a potencialidade de desafiar essa concepção, fato é que, após a verificação das fontes, vê-se que esse monge não apenas não dominava os rudimentos do grego - tornando regular uma declinação irregular -, mas também que essa língua exercia verdadeiro fascínio, pois parecia oferecer a chave para a compreensão dos pontos mais complexos da gramática latina.

Moral da história: na ânsia de se vangloriar de sua suposta erudição, o monge mostrou dissertar sobre o que pouco sabia. Por mais que a carta valha como espécie de estudo gramatical, põe-se em xeque a sua suposta erudição. Talvez o efeito que queria - tirar a desforra com os colegas de St. Gallen - tenha funcionado, não se sabe; mas, para a posteridade, ficou legada a convicção de que teria sido melhor deixar o grego para lá, e contentar-se com o latim e o alemão antigo.

domingo, 1 de novembro de 2020

O Imperador vai bem?

Com a proximidade das eleições, lembrei-me de uma anedota que vi contada por Antonio Candido em uma entrevista. Eram idos de 1940 e poucos, e Cândido estava em Bofete, SP, realizando a pesquisa de campo que embasaria seu futuro Parceiros do Rio Bonito, hoje clássico da antropologia brasileira. Então, encontrou um desses caipiras bem velhos e travou o seguinte diálogo, com o caipira lhe perguntando:

- O imperador vai bem?
- Vai muito bem sim.
- Mas não é mais aquele veião de barba, é?
- Não, agora é um novo chamado Dutra.
- Ah bom!

A. Cândido em Bofete (SP) nos anos 40
A. Candido em Bofete (SP) nos anos 40

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

O que é o Poeta?

"κοῦφον γὰρ χρῆμα ποιητής ἐστιν καὶ πτηνὸν καὶ ἱερόν, καὶ οὐ πρότερον οἷός τε ποιεῖν πρὶν ἂν ἔνθεός τε γένηται καὶ ἔκφρων καὶ ὁ νοῦς μηκέτι ἐν αὐτῷ ἐνῇ: ἕως δ᾽ ἂν τουτὶ ἔχῃ τὸ κτῆμα, ἀδύνατος πᾶς ποιεῖν ἄνθρωπός ἐστιν καὶ χρησμῳδεῖν".

"O poeta é, pois, algo leve, alado e sagrado, e, antes de de se tornar inspirado divinamente, ficando fora de si, sem razão a governá-lo, nada pode criar. Enquanto não dispõe desse dom, nenhum homem é capaz de criar e de dizer oráculos"
(Platão, Íon, 534b)




quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Meio ou meia?

Você também aprendeu que "meio" não flexiona em português, né? Pois é. A tradição literária portuguesa admite essa flexão. A regra contrária parece ser invenção dos gramáticos considerando obrigatório o que era opcional. Há exemplos de Camões, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Castilho e Eça de Queirós do uso flexionado:

  • “Uns caem meios mortos, e outros vão” (Lusíadas, III, 50)
  • "A cabeça do Rubião meia inclinada" (MA, QB)
  • "Casou meia defunta" (MA, VH)
  • "A boca meia aberta" (MA, VH)
  • "A mesma mulher, sempre nua ou meia despida" (EQ, CS)
  • "Cinzeiros com cigarros meios fumados" (José Régio, História das Mulheres)
  • "Cadáveres meios enterrados nas ruínas" (CCB, O judeu)
  • "A carne dos cavalos meia crua" (AH)
  • “Estes homens rudes combatiam meios nus.” (AH)
  • "Os outros corpos estão meios podres" (Pe. Manuel Bernardes)
  • "Deixando a porta meia aberta" (Feliciano de Castilho)
  • "O outro, de cara meia triste" (M. de Andrade, Candinha)
  • "Meia inquieta, adormeceu" (M. Andrade, Belazarte).
[Por vezes, algumas dessas frases foram "corrigidas" em edições modernas].