"Os juramentos de Estrasburgo demonstram esse modo de ver. Na versão românica começam assim: 'pro deo amor et christian poblo et nostro comun salvament'. Isto muito se aproxima do latim. Ao contrário, em alto alemão antigo: 'in godes minna ind in thes christianes folches ind unser bedhero gehaltnissi'... É um mundo linguístico inteiramente diverso. O romano pôde ainda por muito tempo valer-se de um latim mais ou menos corrompido e, partindo daí, familiarizar-se com a latinidade correta. O germano, por seu lado, teve que aprender o latim radicalmente como língua estrangeira - e aprendia-o logo corretamente. Por volta de 700, escreve-se na Inglaterra um latim admiravelmente puro, ao passo que na França reina a decadência. Mesmo grandes eruditos italianos podiam cometer deslizes gramaticais, de que riam os monges alemães. Tal é o caso de Gunzo de Novara, que em 965 chegou à Alemanha, no séquito de Oto I, e, em conversa com os monges em St. Gallen, declinou um caso erradamente. Justificou-se, em carta, de que fora acusado injustamente de ignorância gramatical, 'embora às vezes eu seja estorvado pelo uso de nossa língua popular, muito próxima do latim'".
Invehit in monachum S. Galli, qui quod grammaticaliter in casu quodam errasset, ipsum contemptui habuerat, ostenditque se et in grammatica et in aliis liberalibus studiis eruditum
(Enviou <a epístula> contra um monge de St. Gallen que, como <o autor> houvesse errado um caso gramatical, desprezara-o, mostrando-se <o autor> erudito em gramática e em outras artes liberais)
Pela leitura da carta, parece, de fato, que o autor seria um homem de grande erudição. Ele chega, inclusive, a citar um trecho de Homero em grego! Como, no entanto, tinha ele acesso ao grego, numa época em que essa língua já era tão pouco compreendida na Europa? O caso é uma citação tirada à Eneida de Virgílio. O poeta, em vez de empregar o genitivo "Latagi", utiliza o acusativo "Latagum": "Latagum saxo atque ingenti fragmine montis / Occupat os faciemque adversam". Gunzo, porém, não se dá por satisfeito em notar isto, mas fornece a fonte de inspiração do poeta. Segundo o monge,
Quae figura apud Latinos rarissime, apud Homerum frequens (invenitur, ut est iliud Ecrousen Achillen ton poda, id est percussit Achillem pedem).
Esta figura, raríssima entre os latinos, é frequente em Homero, encontrando-se, por exemplo, em ἔκρουσεν Αχιλλέα τόν πόδα, isto é, feriu Aquiles no pé.
É nessa citação, que fez para emular a mais alta erudição, que suas pretensões caem por terra. Por mais que o acusativo de relação, de fato, exista em grego e seja comum em Homero, a verdade é que o trecho "citado" não consta em Homero! Estranha-se também o uso do acusativo Achillen - que seria o acusativo regular se Aquiles fosse substantivo das duas primeiras declinações em grego (-n), o que não é o caso; a forma correta é Αχιλλέα, isto é, Achillea, de terceira declinação (-a). A recolha do trecho não se deu, portanto, da leitura de um trecho original, mas de uma anotação que Serviano fizera aos seus comentários ao trecho na Eneida: é provável que o monge tenha inspecionado a obra para encontrar situações excepcionais de emprego das declinações, mas, sem conhecer o grego (e, talvez, a própria tradição latina com profundidade), não compreendeu que o acusativo de relação é uma das funções do acusativo. Serviano, ao comentar o Livro X da Eneida, diz:
698. LATAGUM OCCUPAT OS pro "Latagi occupat os". et est Graeca figura, in Homero frequens, ut si dicas ἔκρουσεν Αχιλλέα τόν πόδα, id est Achillem percussit pedem pro percussit Achillis pedem.
(698. LATAGUM OCCUPAT OS em vez de "Latagi occupat os". É figura grega, frequente em Homero, como se dissesses ἔκρουσεν Αχιλλέα τόν πόδα, isto é, feriu Aquiles quanto ao pé, em vez de feriu o pé de Aquiles).
Encontram-se aqui e acolá algumas referências a essa situação. A epístola interessou aos estudos históricos especialmente pela possibilidade de desafiar a ideia de que o grego não era mais conhecido dos autores latinos nesse período da Idade Média. Porém, se tinha a potencialidade de desafiar essa concepção, fato é que, após a verificação das fontes, vê-se que esse monge não apenas não dominava os rudimentos do grego - tornando regular uma declinação irregular -, mas também que essa língua exercia verdadeiro fascínio, pois parecia oferecer a chave para a compreensão dos pontos mais complexos da gramática latina.
Moral da história: na ânsia de se vangloriar de sua suposta erudição, o monge mostrou dissertar sobre o que pouco sabia. Por mais que a carta valha como espécie de estudo gramatical, põe-se em xeque a sua suposta erudição. Talvez o efeito que queria - tirar a desforra com os colegas de St. Gallen - tenha funcionado, não se sabe; mas, para a posteridade, ficou legada a convicção de que teria sido melhor deixar o grego para lá, e contentar-se com o latim e o alemão antigo.