quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Uma decisão exemplar: a metodologia do direito luso-brasileiro

Hoje analiso e traduzo abaixo um parecer do jurisconsulto português, Álvaro Vaz ou Valasco - cuja biografia, na Wikipédia, criei há poucos dias - que pode ser considerada uma decisão exemplar. E por qual razão? De um lado, ela resolve uma questão jurídica nos moldes típicos do raciocínio jurídico que se empregava no direito comum português; por outro lado, ela se destaca por, necessitando descolar-se da literalidade da lei, o jurista ter de explicitar de forma quase teórica sua metodologia interpretativa.

Álvaro Valasco
(1524-1593)

A situação fática poderia aparecer hoje no foro: alguém alugou um imóvel do proprietário. No entanto, o imóvel foi penhorado, executado e quem o comprou no leilão público foi justamente... o locatário. Finda a locação, é preciso que ele devolva a coisa? Esta questão não é tão simples: a princípio, a resposta seria positiva, pois o fato de o locador ter perdido o direito de propriedade sobre a coisa não importa em extinção da locação, pois ela não é negócio dispositivo, mas obrigacional; o poder de disposição sobre a coisa não é requisito da eficácia da locação e, portanto, sua perda superveniente não importa para a relação de locação. O que importaria seria a perda da posse (evicção). Logo, a conclusão a que chegaríamos é a de que o locador mantinha a pretensão contratual à restituição da coisa. No entanto, uma vez restituída a coisa, o locatário, que havia se tornado proprietário, poderia reivindicá-la de volta. Haveria, por assim dizer, um joguete jurídico: o locatário pediria, por pretensão contratual, aquilo que ele estaria obrigado a restituir logo que entrasse na posse da coisa, pela pretensão reivindicatória do locatário, novo proprietário da coisa. 


A resolução do impasse passava, porém, por uma legislação pouco técnica. À época, as Ordenações Manuelinas dispunham, no Livro 4, Tít. 59, §3º, que o locatário ou comodatário não poderiam, no momento de restituir a coisa, questionar a propriedade do locador ou comodante. A norma - que segue implicitamente vigente no sistema de direito civil contemporâneo - tinha dois objetivos: (i) tornar contratos obrigacionais, como comodato e locação, independentes da propriedade (ou, modernamente, da titularidade do poder de disposição), justamente por serem simplesmente obrigacionais; (ii) impedir que se visse, no tempo decorrido desde a entrega da coisa, paralisação ou extinção das ações contratuais ou reivindicatórias. O problema era a expressão "por alguum titulo", em que alguum, em uma frase negativa, recebe o sentido de nenhum. Como lidar com essa exclusão peremptória?

Foi por esta razão que o Álvaro Valasco teve de refletir a respeito do problema da interpretação das leis e, por conseguinte, sentiu-se obrigado a explicitar certos aspectos metodológicos que não eram exclusivamente seus, mas permeavam a cultura jurídica daquele momento. Seguir a literalidade significaria construir um joguete jurídico; desviar imporia uma longa argumentação. Não hesitando em adotar a segunda opção, o jurista tinha ainda outro obstáculo: como desviar na literalidade sem dizer que estava interpretando as Ordenações? Ora, se modernamente ninguém negaria que a interpretação é um processo intransponível na compreensão de um texto, dessa mesma liberdade não gozaria um jurista quinhentista português com a proibição de interpretação que havia nas Ord. Man. Livro 5, título 58, §1º. Em caso de dúvida de interpretação, era preciso que os Desembargadores a levassem à mesa grande para resolver na presença do Regedor. Irresoluta a dúvida, o Regedor faria saber ao Rei, que a resolveria, num claro caso de devolução progressiva da jurisdição. O Desembargador que desobedecesse à regra teria de pagar pena pecuniária às partes e sofreria punição administrativa:


Para que o argumento fosse aceito, e que algum juiz o acatasse, era preciso provar que ele não realizava uma interpretação no sentido que as Ord. haviam condenado. Adotar um sentido amplo de interpretação seria mesmo contraproducente, afinal, se toda atividade jurídica é interpretativa, então todo caso deveria ser levado ao Regedor? Quantas consultas seriam feitas a El-Rei? Essa "interpretação" - ah, o ciclo hermenêutico! - não contradiria a própria criação de um sistema de distribuição da justiça, gestado por juízes, desembargadores, ouvidores, etc.? Além disso, um jurista escolado na leitura das Ordenações sabia muito bem que a precisão conceitual não era o seu forte. Nas Ordenações, vê-se claramente que se prefere dar uma exposição alongada - e, por vezes, no melhor estilo luso, prolixa - das razões que levaram o monarca a adotar certa regra, ao passo que os conceitos jurídicos propriamente ditos aparecem mais como exemplos que como limitação da abrangência de sua aplicação. Basta ver que, no trecho comentado, emprestar, entregar, arrendar e alugar aparecem sem grande preocupação de distinção dos conceitos. Já o "entendimento" que as Ordenações mencionam parece ser uma forma de compreender a finalidade da norma - o que, como mencionado, casaria bem com o esforço na exposição das razões da norma.

Mas dizê-lo assim fortemente poderia atrapalhar a recepção do argumento: fortiter in re, suaviter in modo. O melhor caminho era fazer aquilo de que a escolástica gostava tanto: distinguir. A distincio, que adicionaria alguns adjetivos ao termo original (interpretatio), poderia demonstrar, assim, que existem duas formas de interpretar: a interpretatio hominis e a interpretatio iuris

A primeira - interpretação do homem - é aquela frívola, capciosa; a adjetivação parece remeter à interpretação que beira a má-fé, que subverte o sentido da legislação, esvazia-a de sentido e usa a literalidade como instrumento. Essa interpretação muito provavelmente merece o adjetivo hominis justamente por estar ligada à interpretação partidária, isto é, aquela que defende interesses no foro. A iuris, por sua vez, é o oposto disto: é a compreensão da norma a partir das categorias e valores jurídicos presentes na tradição. Veja-se que a interpretação de Valasco foi exatamente esta: ao perceber que havia concorrência de dois títulos, resolveu reapresentar o problema colorindo-o com os conceitos herdados da tradição jurídica - e que, por conseguinte, permitiriam saber qual dos dois devem prevalecer. (O critério da temporalidade, empregado na resolução, é um dentre tantos outros: hierarquia, especificidade...) Vê-se claramente que para o autor a tradicional dogmática jurídica - o conjunto de conceitos, teorias e a metodologia que ensina a aplicá-los - guarda certa autonomia em relação ao texto legislativo de cada jurisdição. É por isso que a interpretação racional é aceita: há a necessidade de uma espécie de conversão dos termos comuns (palavras tão genéricas!) aos conceitos tirados à dogmática jurídica.

É evidente que uma tese que, no conteúdo, era tão metodologicamente ousada precisaria recorrer, na forma, ao estilo comum de defesa aprovado pelos seus pares. São naturais, portanto, as diversas citações dos comentadores Bártolo de Saxoferrato e a menção de Baldo de Ubaldo, sobretudo no §7º. Neste passo, devemos lembrar que os comentadores não hesitavam em se afastar da interpretação literal, sacrificando conceitos jurídicos em prol da resolução de problemas práticos. É exatamente esse o estilo que, por séculos, adotaram os praxistas e decisionistas portugueses e que até hoje produz seus frutos numa tradição jurídica como a brasileira.

A menção a Bártolo é interessante, posto esperada, pois é justificada de uma forma ampla: o direito reinícola teria recebido todas as interpretações do direito comum. Isso não era a revogação do direito reinícola? Parece que não: a recepção do direito comum estava ligada à utilização de uma metodologia de interpretação das fontes jurídicas - romanas ou reinícolas - que ia muito além da solução de determinado caso; na verdade, abrangia um imenso repertório de conceitos, brocardos e exemplos que aguçavam o olhar do intérprete (iuris!) e refinavam a argumentação jurídica. É esse repetório que está abrangido quando se fala que o direito reinícola recebe todas as interpretações: interpretatio está aí muitíssimo próxima do que, no séc. XIX, chamar-se-ia construção jurídica. De fato, isso levava, por vezes, à identidade de soluções, mas esta não era uma consequência necessária da metodologia. Se juristas posteriores, vulgarizando essa importante distinção, revogavam o direito reinícola para pôr Bártolo em seu lugar é outra questão; aos vulgares não se une o grande Valasco.

Dogmaticamente, o que Valasco conseguiu em seu parecer? Ao defender que o locatário não era obrigado à restituição da coisa para depois cobrá-la pela reivindicatória, ele empregou um brocardo do direito comum dolo petit quod statim redditurus est (age dolosamente aquele que pede a entrega de uma coisa que deverá ser imediatamente devolvida) - e que hoje vem sendo entendido como concretização da boa-fé objetiva. Apesar de não ter mencionado expressamente o brocardo, outros pareceres produzidos no caldo cultural luso-brasileiro resolverão a mesmíssima questão aplicando esse princípio, sob influência de Valasco. Não deixa de ser irônico que, passados três séculos de "evolução" jurídica, o TJ-SP tenha, nos idos dos anos 20, ordenado que o locatário devolvesse o imóvel ao locador, mesmo já tendo adquirido a propriedade em hasta pública!

Seu parecer mostra ainda certas peculiaridades do direito luso-brasileiro. Como já disse acima, a locação não se extingue pela perda da propriedade do locador; para que haja resolução do contrato de locação, é preciso que haja evicção. No direito luso-brasileiro, porém, a questão não é tão simples: como a forma tradicional de exploração do território português se deu pelo emprazamento de terrenos, o instituto jurídico da enfiteuse - muitíssimo aparentado à locação, aliás - abarcou este último, na modalidade da locatio ad longum tempus (i.e., por mais de dez anos), que, por influência de um comentário de Bártolo, passou a ser oponível ao adquirente a título singular, fundindo-se, assim, à estrutura dos direitos reais. Um alvará de D. Maria I resolverá a questão em meados do séc. XVIII. Porém, caso ainda se entenda a locação como direito real, a opinião de Valasco se justifica: sendo negócios de disposição, a perda superveniente da propriedade do concedente implica a extinção da relação jurídica, seja de enfiteuse, seja de locação. A verdade é que a possibilidade de a constituição da locação como negócio de obrigação é implicitamente admitida por Valasco quando admite que alguém, por erro, alugue coisa própria como alheia; nos direitos reais, seria impossível, salvo pouquíssimas exceções - nenhuma delas admitindo erro neste ponto - pela consolidação do domínio.

Mas há algo muito mais profundo nessa decisão. Ao admitir essa defesa do locatário, o que Valasco fez era, na verdade, mudar a relação que os direitos reais e os direitos obrigacionais estabelecem. É preciso perceber que o conflito, no caso em tela, dava-se entre uma pretensão real (reivindicatória) e uma pretensão contratual, nascida do contrato de locação. A questão é que, como as pretensões contratuais, nascidas de negócios de obrigação, desprezam a atribuição do poder de disposição, nasce um vasto campo para conflitos cuja resolução, vista em partes isoladas, implicaria a restituição de algo que deveria ser logo depois devolvido ao restituinte. Da mesma forma, ao falar da renúncia a outros títulos de restituição ao receber a coisa como alugada, Valasco está resolvendo potenciais conflitos entre direitos obrigacionais e entre obrigacionais e reais. Ao dar essa solução, Valasco corrigiu um problema estrutural dos direitos romano-germânicos e diminuiu a independência conflitiva desses dois campos.

E hoje, em que importa ainda este velho contemporâneo de Camões? Hoje, uma época em que a literalidade vem usada como carta na manga - isto é, afastada quando não convém, mas usada como argumento de autoridade papinianesca quando convém -, é oportuno relembrar um exemplo de refinamento de raciocínio jurídico, em que a qualidade do argumento não se mede nem pela proximidade nem pela distância da literalidade, mas antes pelo grau de respeito textual, justificação pormenorizada e verificabilidade teórica.


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ÁLVARO VALASCO

DECISIONUM, CONSULTATIONUM AC RERUM IUDICATARUM 
IN REGNO LUSITANIAE LIBRI DUO
(Dois livros de decisões, pareceres e coisas julgadas no Reino Português)

PARECER XLII

Do locatário de uma casa que, durante a locação, compra-a em hasta pública; se está ele autorizado, com base no novo título, a defender-de do locador, que o aciona pela ação da l. si quis conductionis, C. locati.

SUMÁRIO

  1. Fatispécie
  2. Locatário, uma vez finda a locação, não pode reviver nenhuma questão sobre o título contra o locador.
  3. Limitação: a não ser que, após a celebração da locação, sobrevenha alguma nova causa que autorize a recusa à restituição
  4. Sobre a lei do Reino [Ord. Man.] livro 4, tit. 59, §3
  5. Aquele que aluga coisa própria crendo ser alheia pode levantar questão sobre o domínio?
  6. Ninguém pode, por si só, mudar a causa da sua posse, a não ser se demonstrado por causa extrínseca.
  7. Sobre a Ord. [Man.] livro 5, tit. 58, e de que forma devem ser interpretadas as leis deste reino em casos dúbios
Alguém alugou um prédio do proprietário e, durante o tempo da locação, [1] um credor do proprietário do prédio obteve sentença contra o dito proprietário-locador, e executou-lhe o prédio. Ao vendê-lo em hasta pública, foi [o prédio] comprado pelo dito locatário, que foi imitido na posse tendo por título a compra-e-venda. Posteriormente, o locador acionou o locatário pela ação da l. si quis conductionis, C. locati & l. Real [Ord. Fil.], livro 4, tít. 59, §3 [mod: ação de despejo], segundo a qual o locatário não pode, uma vez terminada a locação, "Dizer que a cousa alugada lhe pertence per direito e per titulo alguum". [2] Pergunta-se se o locatário, com base em novo título, recebido de outra origem, pode contestar, de forma que a coisa alugada não seja imediatamente entregue ao locador. E parecia não poder, pois o dito §3º não admite nenhum questionamento sobre o título ao dizer "Per titulo alguum", que excluem literalmente todo título, seja anterior à locação, seja posterior, pois a negação universal nega a totalidade, leg. si is quis ducent, § utrum, "Qui cum significatio non ex universo" & ibi Dd. de rebus dubiis. Ocorre, porém, que a lei do Reino não admite que as leis régias sejam interpretadas em caso de dúvida, a não ser na forma do livro cit., tit. 58, §1. Aqui, porém, estamos em dúvida se o texto do §3º, especificamente a expressão "Per titulo alguum" exclui também o título que sobreveio de outra origem em favor do locatário após a locação da coisa? E etc.

[3] Decerto, não obstante o dito anteriormente, respondi que a dita lei Régia deve ser entendida restringindo-se-a ao título havido anteriormente à locação. Assim, sendo posterior, citei Alb. in l. si quis fundum, §ff. loca., que assim limita a l. si quis conductionis, de não haja procedência quando, após a locação, sobrevenha ao locatário nova causa de não restituir, seguindo Jas. in consilia 158, colum. fin. ver. quinto principaliter, liv. 2,. Plotus in l. si quando, n. 193, vers. fallit secundo. E, nos nossos termos, quando o locador foi condenado e a coisa locada foi adjudicada ao vencedor na execução, e este a vendeu ao locatário, deu pareceu Jas. consi. 158, colum. 1 versic. ultra eorum, libr. 2. Daí, o direito do locador foi extinto com a adjudicação da coisa e, por conseguinte, também se extinguiu o direito do locatário, l. ex vectigali, ff. de pig. E passou ele a possuidor por novo título, não por nova causa. E isso que foi dito encontrei recentemente, após ter dado a resposta, defendido em Jaco. Menoch., tracta. de remediis recuperanda in unecimo remedio, num 42 & 43. E está é a necessária interpretação da dita lei Régia.

[4] A isso não obstam as palavras da lei Régia, especificamente "Per titulo algum", pois estas palavras tão genéricas devem ser restringidas a termos jurídicos, isto é, ao título havido anteriormente à locação, pois se presume que o locatário renunciou àquele outro título de restituição da posse a si, argum. l. si aliquam rem, ff. de acquir. posseßio. cum adnotatis ibi per Ripam, post alios, Corn. cons. 301, col. pen. liv. 1. argum. si quis ante, &¨ibi notat ff. eod. tit. [5] E, por isso, se alguém alugar por erro coisa própria, julgando-a ser alheia, não se aplica o  l. si quis conductionis, ut per Curt. senio. cons. 71. col. 2, & Menoch. ubi supra, nu. 40. Assim se admitirmos evidentemente a contestação do locatário, ele terá adquirido a propriedade sob o novo título da compra-e-venda em hasta pública. Porém, duvido que os nossos juízes admitam essa limitação à dita lei Real, pois não é muito provável tal ignorância.

[6] O que foi dito acima é provado pelo fato de que não se admite que ninguém mude a sua causa de posse, l. cum nemo, C. de acquir. possess. ubi not. Paul. &omnes, Deci. cons. 500, num [?], Peralta, l. 3 §qui fideicommissariam, numr. 36 ff. de hered. instit. & bene explicat Socin. cons. 131, nu. 7, liv. 1. Guillelmo Cassadorum in Rot. decis. 4 ad fin. Isso é, porém, verdadeiro, a não ser que se manifeste por causa extrínseca, ut d. l. cum nemo, especificamente: "Nulla extrinsecus accedente caussa". Como, portanto, demonstrou-se novo título e causa, deve-se ouvir o alegado no mérito pelo locatário, e a lei régia deve ser restringida, de forma que não se aplique ao novo título adquirido publicamente e sob autoridade do juiz após a locação.

[7] Em segundo lugar, [essa argumentação] não é refutada pelo fato de as leis régias não poderem ser interpretadas em caso de dúvida, a não ser na forma do tit. 58 do liv. 5. Aqui, não nos parece haver dúvida, pois há lei muito semelhante assim declarada pelo direito comum, a saber, l. si quis conductionis. Além disso, entende-se proibida a interpretação injusta, não a justa e a racional, tal como a doutrina de Bártolo in l. omnes populi, ad fin. 6. q. princip., onde ele diz que se recusa a interpretação frívola, mas não a racional, conforme nota in cap. ex parte 2 de offic. deleg. Além disso, a interpretação extensiva e racional não parece ser excluída, Socin. l. I, n. 4, ff. si cert. peta. Curt. Iun. cons. 5 & 6, nu,. 3. E é dito alhures que é lícito à lei simplesmente proibir interpretações às leis Régias, mas deve-se entender por isso a interpretação capciosa e frívola dos homens, e não a interpretação de direito, ex tec. & ibi not. cap. cum in iure, de offic. deleg. tradit Chassan. de Burgun. rubr. 2 fol. 88, nu. 13, col. 3 & seqq, & n. 15. De fato, não se admite de direito comum que se interpretem as leis, a não ser ao Imperador, l. leges, 4 §1, C. de legibus. Porém, é lícito as declarar segundo o verdadeiro sentido, e consoante ao direito, ex. Bart. l. omnes populi, quaest. 6, vers. tertio quero, n. 65 de instr. & iur. Bald. in l. iubentus, §fin. C. ad Trebellia, & in l. 3. C de lib. praeter Paul. l. 1  in princip. col. fin., ff. si certum peta. Donde concluem Alex. e outros mais novos, Ias. cons. 50, lv. 1. Eu adiciono também que as lei Régias recebem todas as interpretações que o direito comum recebeu em tal casos, ut per Domin. cap. licet canon, de electio. liv. 6 vers. nota bene istud. Do exposto a respeito da questão proposita, deve-se julgar em favor do locatário em razão do novo título oriundo de origem diversa e havido posteriomente à locação. Que se leiam as demais limitações completas, ad. dictam leg. si quis conductionis, & consequenter ad dictam leg. Regiam, tit. 59, §3, liv. 4, disse copiosa e brilhantemente Menoch.d.remed. II ex n. 35, pag. 454.

sábado, 26 de dezembro de 2020

Cátedras e confusão

Não é de hoje que a briga pelas cátedras dá baixaria e confusão. Precisamos convir, porém, que outrora isso se fazia de uma maneira mais requintada. Neste caso, de Belchior do Amaral, a invectiva se deu em poesia e em latim. Nada mal, não?



(Tirado da Bibliotheca Lusitana, de Diogo 
Barbosa Machado, Tomo I, 1741, p. 485)

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

O latim e o mundo, o grego e a erudição

"Os juramentos de Estrasburgo demonstram esse modo de ver. Na versão românica começam assim: 'pro deo amor et christian poblo et nostro comun salvament'. Isto muito se aproxima do latim. Ao contrário, em alto alemão antigo: 'in godes minna ind in thes christianes folches ind unser bedhero gehaltnissi'... É um mundo linguístico inteiramente diverso. O romano pôde ainda por muito tempo valer-se de um latim mais ou menos corrompido e, partindo daí, familiarizar-se com a latinidade correta. O germano, por seu lado, teve que aprender o latim radicalmente como língua estrangeira - e aprendia-o logo corretamente. Por volta de 700, escreve-se na Inglaterra um latim admiravelmente puro, ao passo que na França reina a decadência. Mesmo grandes eruditos italianos podiam cometer deslizes gramaticais, de que riam os monges alemães. Tal é o caso de Gunzo de Novara, que em 965 chegou à Alemanha, no séquito de Oto I, e, em conversa com os monges em St. Gallen, declinou um caso erradamente. Justificou-se, em carta, de que fora acusado injustamente de ignorância gramatical, 'embora às vezes eu seja estorvado pelo uso de nossa língua popular, muito próxima do latim'".

(E. Curtius, Literatura Europeia e Idade Média Latina)

***
Mosteiro de St. Gallen

A carta de Gunzo de Novara (impressa na Patrologia Latina, vol. 136) pretende ser uma aula de erudição. Tentando justificar seu erro gramatical, parece ele ter dispendido muito do tempo de sua vida em encontrar situações em que respeitáveis autores latinos tivessem também empregado uma declinação onde outra seria inesperada. Sua carta é, por assim dizer, uma compilação de situações excepcionais, mas interessantes.
Invehit in monachum S. Galli, qui quod grammaticaliter in casu quodam errasset, ipsum contemptui habuerat, ostenditque se et in grammatica et in aliis liberalibus studiis eruditum

(Enviou <a epístula> contra um monge de St. Gallen que, como <o autor> houvesse errado um caso gramatical, desprezara-o, mostrando-se  <o autor> erudito em gramática e em outras artes liberais)

Pela leitura da carta, parece, de fato, que o autor seria um homem de grande erudição. Ele chega, inclusive, a citar um trecho de Homero em grego! Como, no entanto, tinha ele acesso ao grego, numa época em que essa língua já era tão pouco compreendida na Europa? O caso é uma citação tirada à Eneida de Virgílio. O poeta, em vez de empregar o genitivo "Latagi", utiliza o acusativo "Latagum": "Latagum saxo atque ingenti fragmine montis / Occupat os faciemque adversam". Gunzo, porém, não se dá por satisfeito em notar isto, mas fornece a fonte de inspiração do poeta. Segundo o monge, 

Quae figura apud Latinos rarissime, apud Homerum frequens (invenitur, ut est iliud Ecrousen Achillen ton poda, id est percussit Achillem pedem).

Esta figura, raríssima entre os latinos, é frequente em Homero, encontrando-se, por exemplo, em  ἔκρουσεν Αχιλλέα τόν πόδα, isto é, feriu Aquiles no pé.

É nessa citação, que fez para emular a mais alta erudição, que suas pretensões caem por terra. Por mais que o acusativo de relação, de fato, exista em grego e seja comum em Homero, a verdade é que o trecho "citado" não consta em Homero! Estranha-se também o uso do acusativo Achillen - que seria o acusativo regular se Aquiles fosse substantivo das duas primeiras declinações em grego (-n), o que não é o caso; a forma correta é Αχιλλέα, isto é, Achillea, de terceira declinação (-a). A recolha do trecho não se deu, portanto, da leitura de um trecho original, mas de uma anotação que Serviano fizera aos seus comentários ao trecho na Eneida: é provável que o monge tenha inspecionado a obra para encontrar situações excepcionais de emprego das declinações, mas, sem conhecer o grego (e, talvez, a própria tradição latina com profundidade), não compreendeu que o acusativo de relação é uma das funções do acusativo. Serviano, ao comentar o Livro X da Eneida, diz:

698. LATAGUM OCCUPAT OS pro "Latagi occupat os". et est Graeca figura, in Homero frequens, ut si dicas ἔκρουσεν Αχιλλέα τόν πόδα, id est Achillem percussit pedem pro percussit Achillis pedem.

(698. LATAGUM OCCUPAT OS em vez de "Latagi occupat os". É figura grega, frequente em Homero, como se dissesses  ἔκρουσεν Αχιλλέα τόν πόδα, isto é, feriu Aquiles quanto ao pé, em vez de feriu o pé de Aquiles).

Encontram-se aqui e acolá algumas referências a essa situação. A epístola interessou aos estudos históricos especialmente pela possibilidade de desafiar a ideia de que o grego não era mais conhecido dos autores latinos nesse período da Idade Média. Porém, se tinha a potencialidade de desafiar essa concepção, fato é que, após a verificação das fontes, vê-se que esse monge não apenas não dominava os rudimentos do grego - tornando regular uma declinação irregular -, mas também que essa língua exercia verdadeiro fascínio, pois parecia oferecer a chave para a compreensão dos pontos mais complexos da gramática latina.

Moral da história: na ânsia de se vangloriar de sua suposta erudição, o monge mostrou dissertar sobre o que pouco sabia. Por mais que a carta valha como espécie de estudo gramatical, põe-se em xeque a sua suposta erudição. Talvez o efeito que queria - tirar a desforra com os colegas de St. Gallen - tenha funcionado, não se sabe; mas, para a posteridade, ficou legada a convicção de que teria sido melhor deixar o grego para lá, e contentar-se com o latim e o alemão antigo.

domingo, 1 de novembro de 2020

O Imperador vai bem?

Com a proximidade das eleições, lembrei-me de uma anedota que vi contada por Antonio Candido em uma entrevista. Eram idos de 1940 e poucos, e Cândido estava em Bofete, SP, realizando a pesquisa de campo que embasaria seu futuro Parceiros do Rio Bonito, hoje clássico da antropologia brasileira. Então, encontrou um desses caipiras bem velhos e travou o seguinte diálogo, com o caipira lhe perguntando:

- O imperador vai bem?
- Vai muito bem sim.
- Mas não é mais aquele veião de barba, é?
- Não, agora é um novo chamado Dutra.
- Ah bom!

A. Cândido em Bofete (SP) nos anos 40
A. Candido em Bofete (SP) nos anos 40

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

O que é o Poeta?

"κοῦφον γὰρ χρῆμα ποιητής ἐστιν καὶ πτηνὸν καὶ ἱερόν, καὶ οὐ πρότερον οἷός τε ποιεῖν πρὶν ἂν ἔνθεός τε γένηται καὶ ἔκφρων καὶ ὁ νοῦς μηκέτι ἐν αὐτῷ ἐνῇ: ἕως δ᾽ ἂν τουτὶ ἔχῃ τὸ κτῆμα, ἀδύνατος πᾶς ποιεῖν ἄνθρωπός ἐστιν καὶ χρησμῳδεῖν".

"O poeta é, pois, algo leve, alado e sagrado, e, antes de de se tornar inspirado divinamente, ficando fora de si, sem razão a governá-lo, nada pode criar. Enquanto não dispõe desse dom, nenhum homem é capaz de criar e de dizer oráculos"
(Platão, Íon, 534b)




quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Meio ou meia?

Você também aprendeu que "meio" não flexiona em português, né? Pois é. A tradição literária portuguesa admite essa flexão. A regra contrária parece ser invenção dos gramáticos considerando obrigatório o que era opcional. Há exemplos de Camões, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Castilho e Eça de Queirós do uso flexionado:

  • “Uns caem meios mortos, e outros vão” (Lusíadas, III, 50)
  • "A cabeça do Rubião meia inclinada" (MA, QB)
  • "Casou meia defunta" (MA, VH)
  • "A boca meia aberta" (MA, VH)
  • "A mesma mulher, sempre nua ou meia despida" (EQ, CS)
  • "Cinzeiros com cigarros meios fumados" (José Régio, História das Mulheres)
  • "Cadáveres meios enterrados nas ruínas" (CCB, O judeu)
  • "A carne dos cavalos meia crua" (AH)
  • “Estes homens rudes combatiam meios nus.” (AH)
  • "Os outros corpos estão meios podres" (Pe. Manuel Bernardes)
  • "Deixando a porta meia aberta" (Feliciano de Castilho)
  • "O outro, de cara meia triste" (M. de Andrade, Candinha)
  • "Meia inquieta, adormeceu" (M. Andrade, Belazarte).
[Por vezes, algumas dessas frases foram "corrigidas" em edições modernas].



quarta-feira, 15 de abril de 2020

Fantasmas e o direito civil

Nós, que nascemos no séc. XX, pensamos que a colonização da religião sobre o direito se limita a áreas de maior influência do direito público, como o direito constitucional, administrativo ou o direito de família. Mas isso é um engano grave: também o direito contratual era afetado por isso. Vejam essa tese de um jurista importantíssimo do jusracionalismo, Christian Thomasius.






O título é: "Da impossibilidade de rescisão do contrato de locação por medo de fantasmas" (!!!). O subtítulo em alemão é um pouco diferente: "O medo de fantasmas rompe a locação?". A obra compila muitos relatos de pessoas que alugaram casas e que resolveram rescindir o contrato de locação por terem visto... fantasmas! Depois de uma longa discussão do que são fantasmas - assunto em que curiosamente abundam autores ibéricos, rs - o autor conclui pela inexistência desse direito. Ao que parece, o tema era bastante discutido: alguns anos antes, em 1711, houve um doutorado sobre o mesmo tema apresentado por um J. I. Hamilton em Halle. Thomasius presidiu a banca. Provavelmente, o tema calhou bem no seu projeto de direito racional.


terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Ah, os "scholars"!

"É um vício profissional de scholars considerar que a mera acumulação de volumes e artigos faz progredir a compreensão, quando na verdade serve apenas para encher bibliotecas".

(Eric Hobsbawn, na Introdução à obra Formações Econômicas Pré-Capitalistas, de K. Marx, p. 23)



quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Acorda, Senhor!

"Exsurge; quare obdormis, Domine? Exsurge, et ne repellas in finem. Quare faciem tuam avertis? Oblivisceris inopiæ nostræ et tribulationis nostræ? Quoniam humiliata est in pulvere anima nostra; conglutinatus est in terra venter noster. Exsurge, Domine, adjuva nos, et redime nos propter nomen tuum".

"ἐξεγέρθητι ἵνα τί ὑπνοῗς κύριε; ἀνάστηθι καὶ μὴ ἀπώσῃ εἰς τέλος. ἵνα τί τὸ πρόσωπόν σου ἀποστρέφεις; ἐπιλανθάνῃ τῆς πτωχείας ἡμῶν καὶ τῆς θλίψεως ἡμῶν. ὅτι ἐταπεινώθη εἰς χοῦν ἡ ψυχὴ ἡμῶν, ἐκολλήθη εἰς γῆν ἡ γαστὴρ ἡμῶν. ἀνάστα κύριε βοήθησον ἡμῗν καὶ λύτρωσαι ἡμᾶς ἕνεκεν τοῦ ὀνόματός σου"
(Salmo 43)